Cap 15
Num certo sentido, nenhum de nós conhece bem aqueles com quem convive. Nem mesmo nossos amigos muito chegados conhecemos bem; nem eles a nós. Para conhecermos bem uma pessoa precisaríamos saber todas as influências que recebeu da hereditariedade ou do meio-ambiente, bem como todas as decisões que já tomou, e que fizeram dela o que é no presente. Contudo, embora não possamos conhecer profundamente uns aos outros, uma tarefa das mais gratificantes seria procurar traçar os rumos da vida de um homem, principalmente se pudéssemos identificar as grandes forças propulsoras que o motivaram. Como seríamos abençoados se pudéssemos receber, por exemplo, o mesmo impulso de vida cristã que Paulo possuía, e compreender com maior clareza os significados ocultos de sua afirmação: “Eu trago no corpo as marcas de Jesus” (Gl 6.17).
Um fato está bem claro aí — trata-se do reconhecimento de que Cristo é seu dono. Ele pertencia ao Senhor Jesus Cristo, de corpo, alma e espírito. Ele fora marcado como propriedade de Cristo. Quando afirmou que trazia no corpo as cinco chagas do Senhor, não estava querendo dizer, como diria depois São Francisco de Assis, em 1222, que tinha “os estigmas”. Ele não se referia a uma imitação exterior, mas a uma identificação espiritual, que se obtém pela crucificação interior. Ele fora “crucificado com Cristo” (Gl 2.19).
E as marcas da crucificação interior de Paulo eram bem visíveis. Em primeiro lugar, ele tinha a marca da dedicação total a uma tarefa. Se for verdade o que diz a tradição, isto é, que Paulo tinha apenas 1,37 m de altura, então foi o maior anão que já existiu. Ele superou em ritmo de vida, em oração e em fervor espiritual a todos os seus contemporâneos. Seu lema era: “Uma coisa faço”. Mostrava-se completamente indiferente a tudo que os outros homens glorificavam.
Calvino também foi muito criticado porque ficava o dia inteiro sentado preparando sua obra Institutos, e não utilizou sua inspirada pena para dizer nada sobre as glórias dos Alpes. Também Pascal recebeu críticas amargas por ter afirmado que não via nenhuma paisagem que fosse mais merecedora de contemplação do que a alma imortal do homem. E assim também alguém poderia censurar o apóstolo Paulo por não haver dito nada sobre a arte grega ou a majestade do Panteon. É que ele só tinha olhos para o que é espiritual.
Após a disputa que teve no Areópago, expôs abertamente o seu desprezo pela sabedoria deste mundo, e dia a dia resistia à tentação de querer superar os sábios, ou de querer filosofar mais que eles. Sua missão não era defender um ponto de vista, mas derrotar as legiões do inferno.
Houve um momento, provavelmente durante sua estada na Arábia, em que a personalidade dele mudou totalmente. Depois disso, nunca poderia ser tachado de apóstata. Achava-se por demais empenhado em “prosseguir para o alvo”. É bem provável que, se hoje ele ouvisse aquele hino tão apreciado entre nós — “Senhor, sei que tenho forte tendência para me desviar de ti” — ficaria profundamente aborrecido. E o fato de não ser benquisto, nem bem acolhido, nem ter um patrão a sustentá-lo não o incomodava em nada. Seguia sempre em frente — cego para todas as honrarias da terra, surdo a todas as tentações para gozar o lazer, imune ao fascínio das glórias terrenas.
Outra marca que Paulo trazia em si era a da humildade. As traças nunca poderiam corroer esse “manto” que Deus lhe dera. Nunca utilizava a humildade para buscar o louvor dos homens. Ao contrário, colocava-se sempre no primeiro lugar na lista de pecadores (quando nós o teríamos posto em último).
Um velho teólogo galês disse que, se alguém sabe grego, hebraico e latim não deve colocá-los no mesmo lugar em que Pilatos os colocou, isto é, na cabeça de Cristo, mas, sim, aos pés dele. “Mas o que para mim era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo”, afirma Paulo.
Que paz de espírito a humildade nos proporciona, que gozo é saber que não temos nada a perder! Como Paulo não tinha uma alta opinião acerca de si mesmo, não temia sofrer uma queda. Ele poderia ter-se pavoneado com os belos mantos de um reitor de universidade hebraica. Mas brilhou muito mais usando as vestes de um espírito humilde e tranqüilo.
Paulo foi marcado também pelo sofrimento. Vejamos só as situações que ele cita em Romanos 8: fome, perigo, nudez ou espada (tipos de sofrimento que causam desconforto físico) e mais ainda tribulação (talvez da mente), angústia e perseguição (do espírito). Ele suportou todos eles.
Esse judeu missionário guerreou contra os filhos dos homens e contra tudo que fizesse guerra contra Deus. Esse príncipe dos pregadores nunca poupava seu inimigo, o príncipe do inferno, nem era poupado por ele. Travavam uma luta sem trégua.
Vamos olhar Paulo de perto, o seu rosto magro, seu corpo coberto de cicatrizes, a figura encurvada de um homem castigado pela fome, quebrantado pelos jejuns e pelas chicotadas; seu corpo mirrado, brutalmente apedrejado em Listra, passando fome em muitos outros lugares; e sua pele ressequida e rachada depois de trinta e seis horas exposto às intempéries no Mediterrâneo. E acrescentemos a essa lista perigos e mais perigos; multiplicando pela solidão; contemos as cento e noventa e cinco chibatadas, os três naufrágios, os três açoitamentos com varas, um apedrejamento, suas prisões, e as “mortes” que foram tantas que se perdeu a conta. Contudo, se pudéssemos somar tudo isso, teríamos que obter como resultado um zero, pois era assim que ele considerava essas coisas. Ouçamos o que ele diz: “Porque a nossa leve e momentânea tribulação...” Isso é que é menosprezar o sofrimento!
Ademais, Paulo tinha a marca do fervor. Para que uma pessoa invoque o testemunho do Espírito Santo a fim de atestar o que diz é preciso que esteja vivendo perfeitamente no centro da vontade de Deus e caminhando na corda bamba da obediência. Paulo faz isso em Romanos, capítulo 9, verso 1.
Ah, se todos os pregadores de hoje pudessem demonstrar pelo menos uma centelha dessa maravilhosa chama! Açoites não puderam apagar o fogo que ardia nele; jejuns e fomes também não puderam extingui-lo; incompreensões e mentiras não puderam abafá-lo; nem as águas poderiam apagá-lo; nem prisões poderiam dobrá-lo; nem perigos detê-lo. Ele continuou a arder, até que a vida se esvaiu de seu corpo.
O Cristo vivo, que habitava no interior de Paulo (Gl 2.20), e que se manifestava em seu fervor, era a um só tempo alarmante para o inferno, o capital necessário para a expansão da igreja, e motivo de alegria para o coração do Salvador (que, vendo o “fruto do penoso trabalho de sua alma”, ficou satisfeito).
Paulo era marcado pelo amor. Quando ele estava-se tornado “adulto em Cristo”, cultivou também a capacidade de amar. (Somente aquele que atinge a maturidade conhece realmente o amor.) E como ele amava! Em primeiro lugar, e acima de tudo, Paulo amava ao Senhor. Depois, amava o próximo, os inimigos, as adversidades que enfrentou e até a angústia da alma. E deve ter amado muito esta última, senão teria se dedicado menos à oração. E seu amor o levava a buscar os perdidos, os menores, os mais ínfimos. Que amor imenso! Ele amou as sinagogas com os tradicionalistas religiosos, o Areópago com seus intelectuais, os mercados e ruas com seus pródigos, e a todos desejou ganhar para seu Senhor. O amor era como um poderosíssimo dínamo impulsionando-o a realizar grandes coisas para Deus. Não existem muitas pessoas que se comparem a ele na oração. É possível que McCheyne, John Fletcher e o grande David Brainerd e alguns outros tenham conhecido um pouco dessa arte que domina alma e corpo, que é a obra da intercessão motivada pelo amor.
Lembro-me de uma ocasião em que pude estar ao lado da Marechala,[1] quando então entoávamos o maravilhoso hino de sua composição:
“Tenho um amor que me constrange
A ir os perdidos buscar.
Entrego, Senhor, todo o meu ser a ti,
Para a qualquer preço os salvar”.
Não se tratava de uma declaração emocional. Ela pagou o preço de prisões, privações, sofrimentos e pobreza.
Ao que parece Carlos Wesley estava buscando o máximo de Deus quando escreveu: “Não desejo mais nada na terra, a não ser possuir teu puro amor em meu coração”. E mais recentemente, Amy Carmichael fez a seguinte petição: “Dá-me um amor que me impulsione, uma fé que não esmoreça diante de nada”. Não há dúvida de que essas pessoas se encontravam prestes a descobrir o segredo do poder para ganhar almas presente na vida dos apóstolos.
Os grandes ganhadores de almas foram sempre indivíduos cheios de uma grande paixão pelos perdidos. Todos os seus interesses menores eram suplantados pelo amor maior. Foi seu grande amor pelo Amado de sua alma que os fez chegar às lágrimas, ao labor intenso e ao triunfo final. Como podemos nós, que vivemos numa hora de trevas, dar-nos o luxo de amar menos?
Desejo amar-te, ó Deus, e demonstrar esse amor
em atos, pensamentos, palavras.
Com esse amor poderei andar em justiça,
E servir-te como devo.
O amor torna mais leve as tribulações,
E suaviza as dificuldades.
O amor te seguirá sem questionar,
Agirá com ousadia e triunfará!
Brevemente milhões de pessoas receberão a marca do anticristo, querendo ou não. Será que nos esquivaremos de receber em nosso corpo, alma e espírito a marca de nosso Senhor, as marcas de Jesus? O processo de marcar é doloroso. Será que estamos prontos a nos submeter a ele? Ostentar uma marca é carregar sempre a humilhação de ser escravo. Queremos mesmo ser marcados — como propriedade de Cristo?
“Eu pelo evangelho vos gerei em Cristo Jesus”.
— Paulo.
“Ore, meu irmão, ore. Ore, a despeito das oposições de Satanás. Passe horas em oração. Prefira negligenciar a companhia dos amigos do que deixar de orar. Prefira jejuar, abster-se do desjejum, do almoço, do jantar, e não dormir, do que deixar de orar. E não adianta ficarmos conversando sobre oração; temos que orar muito, e com fervor. A vinda do Senhor está próxima. E ele virá despercebidamente, quando as virgens estiverem dormindo”.
— Andrew Bonar.
“Foram precisos sete anos de trabalho:
Para que Carey conseguisse batizar o primeiro convertido na Índia.
Para que Judson conquistasse o primeiro discípulo na Birmânia.
Para que Morrison levasse a Cristo o primeiro chinês.
Para que Moffat visse as primeiras evidências da operação do Espírito Santo no local onde trabalhava, na África.
Para que Henry Richards ganhasse o primeiro convertido em Banza Manteka”.
— A. J. Gordon.
“A oração é o sangue da alma”.
— George Herbert.
[1] O autor refere-se a Sra. Catarina Booth Clibburn, filha do General William Booth, fundador do Exército de Salvação, que foi ela própria uma grande missionária. NT.
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